Gosto (XVIII)

Gosto muito de plantas e principalmente de árvores. Sempre que vejo uma árvore em apuros tento salvá-la do que a está a importunar, ainda que perceba que muitas têm de ser abatidas, para providenciarem materiais ao homem (também é por as árvores nos darem tanta matéria-prima que gosto tanto delas). Houve várias ocasiões em que vi árvores cheias de lixo e as limpei das suas sujidades, lembro-me de um caso em particular em que a árvore tinha papeis nos ramos e embalagens de chocolate nos seus orifícios. Tirei-lhe todas essas imundícies, deitei-lhe todo o conteúdo da garrafa de água que eu tinha para essa noite (estava a viajar e a dormir na rua) porque vi que a sua pele (a que as pessoas dão o absurdo nome de casca) estava seca e depois dei-lhe um intenso abraço. Ela não me rejeitou e tornou o meu abraço mais confortável emitindo um suave som com as suas folhinhas verdes balanceando. Ficamos abraçados toda a noite num sentimento pleno de comunhão e amor. Nestas relações que estabeleço com árvores, gosto muito do facto de saber sempre onde as posso reencontrar, ainda que já tenha sentido a amargura da transplantação, do abate e até da poda. Admito que terminei a minha relação com uma árvore por ela estar podada de forma cruel e ter um aspecto grotesco, sem os seus delgados ramos.

Acho que um dia, os Homens vão começar a ouvir um estridente som de revolta, procurarão a sua origem e aproximar-se-ão das árvores, porque o som claramente vem de lá. Pequenos, sob o porte miraculoso destas plantas, os Homens buscarão escadotes para procurarem os altifalantes que emitem o som assassino, o som insuportável, um som da dor da eternidade como golpes lancinantes de tristeza. Não serão encontrados altifalantes, nem nenhum outro tipo de reprodutor sonoro. Revirar-se-ão todas as folhas e todos os ramos de todas as árvores e o som continuará, perturbador. Quando começarem a cortar a árvore, os Homens aperceber-se-ão que isso apenas intensifica o barulho que então lhes parecerá vir do coração das raízes enterradas. O coto curto da árvore será uma loucura sonora. Aqueles que as decidirem queimar ouvi-lás-ão lamentarem-se num choro que se ergue acima de todos os outros, mas que cessa assim que o fogo consumir toda a árvore. Esta é uma prescrição para o futuro, poderão vir a lamentar as atrocidades actuais.

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