Os Diários Lunáticos de Zenit Saphyr (14 de Setembro de 1981)

Fazem hoje dois meses desde o dia em que saí definitivamente do Acampamento Índio, desde o dia em que, numas horas, destruí a vida que construíra nos últimos seis anos. Como fugi dias antes de uma pequena migração, ser-me-á difícil reencontrar os meus companheiros, caso eu os quisesse encontrar, mas eu estou decidido a não voltar. Fugi da rotina, das obrigações, mas sobretudo do fim do amor. Ivair, mãe dos meus dois filhos, a minha índia deslumbrante, estava envelhecida, mais gasta e, pior de tudo, cada vez nos suportávamos menos. Senti-o demasiadas vezes, por isso decidi partir, abandoná-los aos três, depois de uma última sessão de ayahuasca nas redondezas da nossa aldeia. Tenho andando a arrastar o meu corpo derrotado, mas esperançoso na Floresta Amazónica, parando em algumas aldeias para pernoitar.
Ontem cheguei à cidade de Porto Velho, onde descansei numa simpática estalagem. Hoje, a solidão dos meus passos conduziu-me a um cemitério, e eu entrei, porque gosto sempre de passear entre as campas. Como o cemitério era pequeno, o grupo de 15 pessoas que assistia a um enterro, destacava-se contrastando os seus trajos negros com a brancura das lápides. Aproximei-me resolutamente deles e observei o caixão fechado, tentando exprimir com os meus olhos toda a tristeza do mundo, mas a minha chegada não lhes chamou a atenção. A maior parte das pessoas já era idosa, excepto os pais de uma criança com cerca de 3 anos, que parecia não saber bem o que se estava passar. Comovido com a inocência do menino que eu deduzi ser o neto do morto, os meus olhos começaram a arder e eu não fiz nada para evitar o choro. Levei as mãos a cara, tapei os olhos, mas isso só chamou mais a atenção para o meu choro convulsivo. Sentia uma imensa amargura chegar a mim vinda de todos os caminhos da minha vida. Não sabia por que chorava, mas chorava e não podia parar. Então tomei uma decisão: para uma conveniente exacerbação da minha tristeza, decidi começar a ir a cemitérios, assistir a funerais de desconhecidos. Aí, as lágrimas incontroláveis, que me deslizam pela face em torrentes desde que abandonei a minha companheira e os meus filhos, farão sentido. Chamei a atenção de algumas das pessoas, mas ninguém levou a mal a minha atitude, nem me pareceu condenar, o que é normal, pois ninguém conhece todas as pessoas que as outras pessoas conhecem e, no caixão, o morto não se preocupa em identificar os intrusos. Para um familiar, ver alguém a chorar copiosamente num funeral até pode ser visto como algo elogioso em relação ao morto. Quer dizer que a sua partida causou verdadeira tristeza em alguém. Um dos senhores idosos veio ter comigo e colocou-me um braço em volta das costas. Depois, começou a dar pancadinhas com a palma da mão. Eu olhei-o, agradecendo, tentando controlar as lágrimas. Perdidas no céu, as nuvens cinzentas arrastavam-se lentamente, lançando um grito de agonia que enchia o dia. A vida é um vale de lágrimas.

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