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A mostrar mensagens de setembro, 2015

Comiseração (24)

Há uma imagem que, por mais que tente, não consigo apagar da minha cabeça: - Uma mangueira sem qualquer mão a conduzi-la, perdida no chão, a brotar água abundante da sua boca copiosa para a terra, em que se vai formando um charco cada vez maior de água que já não consegue penetrar no solo de tão enlameado que ele já está e o meu cadáver estendido no chão junto da mangueira e da água e da terra. Estou em tronco nu e não tenho manchas de sangue à minha volta nem marcas de golpes no corpo, mas as manchas de sangue podem estar diluídas na água e as marcas de golpes podem estar nas minhas costas uma vez que estou de barriga para cima. Sempre senti algo de muito natural quando estou a regar, como se fosse a única coisa que nasci para fazer, como se algo de mágico me unisse à água e à terra. Quando morrer a regar terei uma morte feliz. Nadir Veld

Comiseração (23)

Nunca poderei ser um grande artista porque insisto na minha sinceridade envergonhada. Nunca sou totalmente sincero naquilo que digo e escrevo; escondo sempre coisas, muitas coisas que são tão terríveis que eu nem sequer sou capaz de as escrever para as apagar a seguir - sou completamente incapaz sequer de as escrever à mão numa folha, sabendo que depois a posso amarrotar ou até queimar. Quando me lembro de certos acontecimentos sou acometido por espasmos terríveis e tenho de agarrar a minha cabeça para que o cérebro não expluda. São recordações que existem apenas como torturas para povoarem a mente mutilada. Eu acho que para alguém escrever muito bem precisa de já ter vivido momentos angustiantes, em que a vida perde todo o sentido e resta apenas uma nuvem negra cheia de tormentas para acompanhar para todo o lado o corpo interiormente adormecido, mas esse escritor deve falar das suas mágoas com uma totalidade absoluta, sem medos, sem barreiras, disposto até a auto-humilhar-se, contudo

Comiseração (22)

Quão lamentável é ter nascido nesta parte do mundo tão tranquila, em que grande parte dos terrores e aflições de uma vida verdadeiramente atormentada estão indisponíveis. Aqui, neste canto da Europa chamado Portugal, buscamos tristeza com sucesso, mas não deixamos de olhar com inveja para aqueles que são bafejados pela sorte de uma vida verdadeiramente difícil, em que a luta pela sobrevivência é travada todos os dias, quer seja fugindo de balas de morte certa, quer seja buscando comida para vencer a fome destemida, que enche os estômagos de vazio e secura penetrante. Trocava a minha imutável dor por um desafio, por uma dificuldade tão grande, que não me deixaria mais que pensar a não ser vencer esse obstáculo, esse obstáculo tão grande que me faria esquecer o meu passado turbulento, mas tudo continua calmo neste extremo do mundo e até a comida me cai das árvores na cabeça... Nadir Veld

Periquito repousado (TRÊS LINHAS) - HAIKU?

Patas de periquito no parapeito Repouso nas asas e no peito Satisfeito com o sossego perfeito

Tumbas para todos

Uma tumba para ti, uma tumba para o outro Uma tumba para todos os que tombam Tomando a rota do reino eterno Voando sós para o mundo externo Trágicos e desamparados enquanto almas Mágicos e agora sagrados enquanto corpos Velados por olhos de lágrimas toldados Coitados dos tombados malogrados Nunca mais vão ser acordados E não mais serão por luz motivados Depois dos rituais que lhes são consagrados Alvos Millar