Gosto (58) P

Gosto de libertar as folhas que escrevo à mão, soltando-as à toa para a escuridão. Isto quer dizer que gosto de espalhar os meus escritos aleatoriamente pelo mundo. Como já disse, dá-me um enorme prazer escrever à mão, acho que só assim consigo expressar verdadeiramente o meu sentimento. O resultado desse acto criativo são folhas que, do meu ponto de vista, valem vários milhares de euros, ainda que sejam vulgares folhas A4 brancas, com ou sem linhas (algumas até quadriculadas), pois estão povoadas de gloriosos pensamentos, bonitos desenhos e ideias aparentemente simples, que, na verdade, abrem milhares de portas. Quem ler uma das folhas que eu escrevo à mão tem uma parte significativa da verdade do mundo escancarada diante dos seus olhos. Um amigo meu a que eu ofereci 20 das minhas folhas de prenda de aniversário, disse-me, que, em cada uma delas, encontrou ideias que chegariam para preencher uma inteira e complexa vida de trabalho, tão profundas e disruptivas eram as mensagens nelas espalhadas. Lembro-me de ele ter dito 'se quiseres desenvolver esta ideia, podes escrever um romance de 600 páginas a partir dela'. Fiquei um pouco comovido, mas nada de mais, até porque sabia ser praticamente incapaz de desenvolver uma ideia tão complexa, uma vez que sou tão disperso e desorganizado: enquanto estou a desenvolver um pensamento, surgem-me quinhentos que o suplantam. O meu amigo Vítor Rodrigues, a quem eu permito quase livre acesso às minhas folhas, disse-me que um dos meus poemas 'apareceu' na arca do Fernando Pessoa e foi publicado sob o nome do heterônimo Álvaro de Campos. Eu não fiquei surpreendido nem chateado com esta informação, porque, de facto, é possível que tenha sido eu a escrever o poema em questão. Depois de concluir a escrita de um poema, para mim, ele cai no olvido completo. Provavelmente nem sequer recordarei sobre o que era o poema ou o texto. A escrita do poema é um acto criativo que só me interessa no momento em que acontece, com a fúria cega de um ímpeto criativo que não sei explicar. Claro que é um enorme elogio eu poder ser um escritor fantasma do Fernando Pessoa. Estou bastante seguro que, mesmo que não sejam todos meus, muitos dos seus 'novos poemas recém-descobertos' foram escritos por escritores fantasma que se fazem passar por ele, numa operação financiada pelo governo português, para haver sempre coisas novas a sair, escritas pelo grande poeta nacional. Já ouvi muita gente questionar-se sobre por que não teria fundo a arca do Pessoa...pois, esta é a resposta.

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