Os Diários Lunáticos de Zenit Saphyr (24 de Agosto de 2016)

Em Bolonha, com um grupo de raparigas e também alguns rapazes extremamente imaginativos, apreciava as suas capacidades criativas enquanto faziam jogos colectivos que os divertiam nas quentes noites de verão. Elas tinham um papel com uma lista de desafios rabiscados que iam concluído ao longo das horas. Abordaram-me porque tinham escrito na folha que deviam encontrar um bolonhês casado que tivesse aliança e que andasse na rua às três da manhã. Eu disse-lhes que estavam com azar, que eu nem sequer era bolonhês, tinha nascido no Brasil. Elas acharam isso bastante exótico e convidaram-me a juntar-me ao seu grupo. Sentei-me na sua roda. O próximo desafio era cantar músicas que previamente ouviam, usando apenas sinónimos da letra original, sem que com isso desvirtuassem o verdadeiro sentido do poema. Foi muito divertido ver o esforço que faziam para encontrar palavras adequadas. A forma hesitante com que iam progredindo e avançando, revirando os olhos para procurar na sua memória mostrava que estavam empenhadas. Depois de muitas gargalhadas motivadas pelas palavras encontradas para substituir letras de músicas, que variavam muito no estilo e iam desde Tempi d'oro de Duo Bucolico até canções românticas de Fabrizio de André, passando pela patética Da una lacrima sul viso de Bobby Solo, que sempre foi das minhas músicas preferidas, entre outras, chegou a minha vez de cantar cambiando a letra. A rapariga que me convidou para sentar disse que eu estava isento, pois não era um falante da língua, mas eu pedi para jogar desde que pudesse ser eu a escolher a música, ao contrário do que eles estavam a fazer antes, em que um membro do grupo escolhia a música que outro deveria traduzir para diferentes palavras. Eles aceitaram e eu escolhi a música vermelha Bella Ciao da qual já conhecia a letra e saí-me bem. "Un doppo notte fu eccitado e ho sguardado l'opresor"...Quando acabei recebi um aplauso efusivo e até eu fiquei surpreendido pela minha fluência em italiano. Percebi que se cá ficasse mais um mês passaria a falar italiano tão bem como falo espanhol, a minha segunda língua. E tudo isso sem ter aulas algumas a não ser as conversas com pessoas na rua, principalmente mulheres italianas. No jogo seguinte, aquele que me marcou mais e, certamente mais perdurará na minha memória, um dos membros do grupo teria de fazer um discurso. Calhou em sorte ser a Olga, a tal que me tinha abordado inicialmente a fazer o discurso. Não me lembro já ao certo no que consistia o seu discurso, estava a prestar mais atenção aos amigos e amigas dela que a olhavam interessados. A beleza das raparigas italianas deixava-me encantado, o tom bronzeado da sua pele, os seus olhos brilhantes e cheios de via eram puro deleite. Acho que as italianas têm os olhos mais belos do mundo. Principalmente quando são castanhos, os seus olhos conseguem adquirir formas e expressões espantosas que não costumo ver noutros lados. Depois de passar uns minutos mesmerizado pelo encanto que elas desprendiam, voltei ao mundo e a prestar atenção ao discurso da Olga, que sempre me tinha parecido algo hesitante. A primeira coisa que ouvi foi "questo è accaduto a millesetecento...". Neste momento ela fez uma pausa bastante longa, uma pausa tão longa que me permitiu pensar em muitas coisas. Dizia que algo se tinha passado em mil setecentos e.... Dessa época, a primeira coisa, a primeira data que me veio à memória foi uma e uma só. Não sei por quê, nunca o poderei explicar, como muitas outras coincidências estranhas que me acontecem e que me aparecem embrulhadas em negro embrulho e quando abro o pacote e vejo o seu conteúdo encaro a morte a olhar-me nos olhos e eu fico a olhar para a morte. Ao ouvir falar de mil setecentos e qualquer coisa eu pensei instantaneamente em 1755 e no Grande Terramoto de Lisboa. Por mais que tente não consigo discernir a razão que me levou a pensar apenas nisso, uma vez que tantas coisas aconteceram no século XVIII. A Olga continuou o seu discurso com 89, mil setecentos e oitenta e nove, mas essa data parece que chegou a mim duas horas depois, como se, no entretanto, eu tivesse ficado submergido num mundo de traumas, tivesse visto o caos de edifícios destroçados e da sua poeira enchendo o ar entre gritos de horror e de preocupação pelos que ficaram soterrados, chegou a mim como noutro mundo, como se tivessem sido outros lábios a proferir a conclusão da data e não os da italiana Olga que conhecera há uma ou duas horas. Meia hora depois dessa minha "viagem" pelos reinos da minha sombria e inexplicável consciência, a terra tremeu a duzentos quilómetros do sítio onde estava, soterrando casas e ruas, destruindo a cidade de Amatrice, matando mais de 260 pessoas enquanto sonhavam. De manhã, quando acordei com um grito da Olga enquanto via na televisão as notícias vespertinas, não pude deixar de me sentir um anjo enganado da morte, que, com o mero pensamento, pode ceifar vidas involuntariamente.

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