Gosto (XXXII)

Gosto dos ruídos da noite, mesmo que esteja a tentar dormir. Nunca me queixei do barulho dos vizinhos a ninguém, até porque, na verdade, as pessoas mais barulhentas actuam de dia, com as suas sirenes, carros de limpeza extravagantes e o fragor do movimento e da vida. À Noite os ruídos são muito mais subtis, delicados. É o ruído dos silenciosos, a maior parte das vezes. Os gestos cuidadosos revelam o respeito pelos que dormem. Todo o som que me chega aos ouvidos parece produzido num sonho alheio e compreender o seu significado torna-se uma obsessão, por vezes.

- Louvo o som de objectos caídos no soalho e cujo impacto misterioso me deixa a imaginar histórias. Podem ser pessoas descuidadas, ou objectos esquecidos num quarto do passado, há muito tempo caminhando para aquela solitária queda, perturbadora da paz inanimada.
-Gosto de ouvir o som de chaves a cair no alcatrão, tilintando debilmente, quando estou na cama.
-Gosto de ouvir bêbedos a cantar canções icompreensíves enquanto adormeço, como se fossem canções de embalar para loucos.
-É maravilhoso ouvir o som de uma fechadura a ser accionado por uma tilintante chave. O som das portas a bater e o efeito ventoso que provoca também me agradam, mas não tanto.
-Gosto de ouvir desentendimentos. Por vezes aproximo-me da janela para os perceber melhor.
-Não gosto particularmente do som de música, porque significa festa e eu sou incapaz de dormir se houver uma festa num raio de 200 metros com a minha casa. Vou para a festa e pouco durmo. Olheiras. Papeiras, Velhices.
-Gosto muito de fazer um barulho para perturbar a tranquilidade e ouvir o seu efeito nas pessoas que descansavam enquanto sem mexem incomodadas e despertadas. Às vezesé só um grito seco de comemoração, indetectável. Como pode ser uma coisa aborrecida não faço isto muitas vezes.
- Gosto de ouvir o som de um motor de um carro a ronronar na rua silenciosa, enquanto o sinto abrandar e parar. Normalmente a porta abre-se e fecha-se. Algumas palavras e, por vezes, carícias são trocadas através do vidro aberto e o carro arranca. Tacões de sapatos de mulher ressoam pela rua até se perderem do meu horizonte sonoro.
-Gosto sobretudo da conversa das prostitutas que ouvi muitas vezes e reconheço pelo timbre de voz em que é levado a cabo. Oiço-as falar dos seus ódios e, frequentemente, desejos expressos de morte a alguém.

MAS, A MAIOR PARTE DAS VEZES, SOU EU QUE PROVOCO OS RUÍDOS DA NOITE E OS POLÍTICOS-GANGSTERS ALUCINAM COM A MINHA COMPREENSÃO TOTAL. VEJAM QUAIS SÃO OS PRAZERES DA VIDA, AS PEQUENAS DELÍCIAS. DEIXEM-NAS ACONTECER SEM PENSAR EM LEIS NEM EM TRATADOS NEM NOS PATRÕES DAS NOSSAS ACÇÕES. FAÇAM BARULHO QUANDO QUISEREM. TÊM A MINHA BÊNÇÃO.

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