Os Diários Lunáticos de Zenit Saphyr (25 de Julho de 2016) (Passado)

Passeava na praça Blaha Luzja em Budapeste às duas da manhã quando um senhor com uma cara única me chamou a atenção. Tinha cerca de 60 anos e uma expressão dura difícil de qualificar. Parecia que todas as coisas terríveis já se haviam passado na sua vida. Tentei adivinhar a sua história: os seus avós haviam sido massacrados na Segunda Guerra Mundial, dois queimados e os outros lançados ao Danúbio; os seus pais haviam sido presos e torturados pelos nazis, mas conseguiram escapar para depois desaparecerem levados pelo carro negro dos comunistas, nunca mais apareceram; a sua mulher havia morrido a dar à luz o seu segundo filho; a sua filha morrera atropelada nos anos 90 ou desaparecera, raptada pelos alcoviteiros de produções pornográficas. Não sei, não faço ideia, posso apenas deduzir. A única coisa que posso dizer é que ele tinha um inolvidável rosto de sofrimento, uns olhos tristes focados no vazio, revoltados com a vida e uma dor imensa na alma, que contribuía para acentuar a monumentalidade desolada que se sente na atmosfera da capital húngara. As suas vestes esfarrapadas e com manchas de vinho nem sequer chamavam a atenção, tão forte era a sua expressão. Sentei-me perto dele para beber daquele sofrimento, para aumentar o meu conhecimento. Pensei em ir falar-lhe, mas ele só devia falar húngaro e não me pareceu que quisesse ser abordado por ninguém. Que expressão única, que face terrível. A praça estava povoada de pessoas ébrias e pedintes A certa altura passou um ciclista perto do homem da expressão incrível que fez com que uma pomba voasse para fugir da bicicleta. Estranhamente essa pomba voou directamente para a cara do homem da expressão lunática que teve uma rápida reacção agarrou a pomba e, com uma expressão de pura raiva, puxou por cada uma das suas asas e rasgou violentamente a pomba em duas, criando um feixe de sangue que sujou a sua cara. Atirou a pomba morta para o chão e criou-se à sua volta uma pequena poça de sangue. Levantei-me para me ir embora contemplando uma última vez aquela cara espantosa, que agora parecia a de um carniceiro depois de uma matança. Admirarei sempre aquele senhor anónimo.

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