Os Diários Lunáticos de Zenit Saphyr (25 de Junho de 2016)

Estava em Košice na Eslováquia, a ver o jogo do europeu de futebol que opunha Portugal à Croácia, na esplanada de um café na zona central da segunda cidade eslovaca, sentado à mesa com um homem que não conhecia, mas tinha-me sentado ali por não haver mais mesas vazias e aquela ter boas vistas para o televisor. Já no prolongamento, depois de ter bebido três ou quatro cervejas, chamei a empregada para pedir mais uma. 'Jedno pivo' disse-lhe, num eslovaco perfeito e levantei o dedo indicador para simbolizar o um com a mão. Quando ela voltou trazia consigo duas cervejas. Ainda pensei que a segunda cerveja fosse para uma outra pessoa presente na esplanada, mas ela trouxe ambas para mim. Em inglês, porque o meu eslovaco não chega para explicações nem reclamações, disse-lhe que era apenas uma cerveja e fiz novamente o símbolo que eu há muito achava universal para o número um, um indicador esticado em nenhuma direcção particular, simplesmente indicando uma quantidade, uma unidade. A empregada, também em inglês, disse-me que eu tinha dito duas e esticou o indicador e o polegar, fazendo aquilo que eu reconheço mais como o símbolo da pistola. Fiquei um pouco insultado porque eu lhe disse claramente 'jedno pivo' e não 'dva piva', que é bastante diferente, mas depois reparei no símbolo que ela fazia com as mãos, diferente daquele que eu uso para identificar o número 2 e lembrei-me que no leste se conta pelas mãos de forma diferente. Para fazer o número um, normalmente eles levantam o dedo polegar, como para fazer o símbolo de fixe e quando começam a contar vão levantado os dedos na direcção do mindinho partindo do polegar, primeiro o indicador, depois o dedo do meio e por aí fora, portanto a senhora tinha percebido dois porque não me tinha ouvido e tinha simplesmente olhado para a minha mão que tinha, de facto, o indicador esticado, mas não tinha, de maneira nenhuma, o polegar, que se encontrava encostado aos outros dedos. Não lhe pedi desculpa, como costumo pedir quando um erro meu engana um empregado, porque neste caso eu não tinha culpa nenhuma, são simplesmente símbolos diferentes, culturas distintas.
É engraçado quando há símbolos que tomamos por universais e depois se revelam enganadores e capazes de gerar não só controvérsia, mas também erros e algum caos. Na Bulgária, por exemplo, as pessoas abanam horizontalmente a cabeça para dizer que sim, num gesto que em quase todo o lado é tomado como uma negativa e abanam verticalmente a cabeça, num gesto que costuma expressar afirmação, para dizer que não. Contudo há outros símbolos que raramente falham em simbolizar aquilo que queremos dizer. Por exemplo, se dobrarmos todos os quatro dedos maiores na direcção da palma e fizermos andar, dobrando para cima e para baixo, o polegar que ficou livre, as pessoas percebem que estamos a pedir um isqueiro. De facto, a pessoa que faz o símbolo parece estar a acender um isqueiro imaginário. Claro que se pode dizer que ajuda a descodificar o símbolo o facto de, normalmente, a pessoa que faz o faz ter um cigarro apagado nos lábios e a pessoa a quem o símbolo é feito normalmente estar a fumar, mas é um símbolo universal por todos compreendido. O gesto para pedir boleia é muito semelhante a este, mas quem o faz não pode dobrar o polegar, tem de mantê-lo firme como quem faz fixe, outro símbolo universal, e esticar o braço aos carros que passam. Um gesto que eu considero oposto ao de fixe é aquele que implica levantar o dedo do meio com a balma, ou as costas da mão, voltada para quem pretende insultar e fazer uma expressão rude e antipática. Este gesto, denominado na gíria por "manguito", pretende simbolizar um caralho que a pessoa visada deve engolir, para seu grande desgosto. É um gesto simples e eficaz para ofender e rebaixar, pessoalmente prefiro usar aquele que envolve bater com o punho no meio do braço que dobro quando esmurro e que significa mais "vai-te lixar" ou "quero que te fodas". Quando nos despedimos de alguém costumamos dizer adeus movimentando a mão para um lado e para o outro através de golpes de pulso, com a palma da mão voltada para a pessoa de que nos pretendemos despedir, com o braço ligeiramente erguido e uma expressão quase triste, mas ainda um pouco alegre porque aquela pessoa que nos é querida ainda ali está, mas somos incapazes de esconder aquela expressão de melancolia antecipada. Se alguém vier ter connosco e tocar repetidas vezes com o dedo indicador no pulso vazio, quer dizer que precisa que nos lhe digamos a hora. Já quase não se usam relógios, mas este símbolo permanecerá durante muito tempo. Nos dias que correm, quando nos dizem ou quando dizemos as horas, a maior parte das vezes recorre-se ao telemóvel, onde a hora digital é exibida, o que faz com que esta acção de perguntar as horas possa ocorrer no mais completo silêncio, sem que seja trocada uma única palavra. Imaginemos um estrangeiro, que se dirige a nós e aponta para o pulso com o indicador. Nós tiramos o telemóvel e colocamos os números à sua frente. Ele analisa, vê e agradece com um aceno simpático da sua cabeça sorridente. De seguida continua o seu caminho e só de gestos se fez uma interacção cordial, pacífica e profícua, pois ambas as partes acabaram por ganhar algo depois de ela suceder, nem que seja apenas um sorriso. Num restaurante, depois de comermos, podemos pedir a conta juntando o polegar, o indicador e o dedo do meio e fazendo de conta que estamos a escrever no ar, em papel imaginário. É muito interessante notar que muitos dos gestos que usamos para expressar alguma coisa passam por fingir que essa coisa ou uma coisa semelhante está a acontecer.

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