Gosto (220)

Gosto do exemplar Conto do Gin Tónico “Gulodice”, em que o protagonista arma um escarcéu numa pastelaria porque tenta caçar o pastel exposto na vitrine como se fora um alvo. O doce foge. É o caos, ele não vai deixar escapar o bolo e persegue-o, mas ele acaba por fugir pelas ruas, quem sabe se estrebuchando algum creme para as formigas, ferido, prestes a entregar-se a duas pombas que acabarão chamando mais cinco ou seis, como hienas debicando creme de pasteleiro e massa, felicidade para as pombas do bairro, pequeno festim e quando acaba o frenesi olham-se como estúpidas e partem batendo sonoras asas pelos ares.

É um conto perfeito, gostava muito de o ter escrito, que é uma coisa que nunca disse e sobre a qual tenho pensamentos férreos. Não se deve dizer isso, nós nunca poderíamos ter escrito o que outra pessoa escreveu, isso é impossível. As correntes do tempo dizem que ao fim de cinco segundos as mesmas ideias ramificam-se em já cem de outra espécie. Diferentes caminhos foram tomados por diferentes pernas. E assim continuará a ser.

A ideia de pôr um gajo a lutar contra um pastel que lhe escapa das mãos tem aquele toque de surrealidade mágica que tanto aprecio. Tem também muito de cómico e de absurdo, é uma história mesmo linda.


A maior parte das pessoas come bolos executando uma espécie de rito. Olha-os, regala-se por antecipação, observa a forma e a cor, entrega-se a suposições sobre o que será o recheio oculto, espera um pouco para a surpresa ser mais excelente e só então os come,com discretas dentadas saboreantes.

Makarel não. Quando via um bolo avançava com raiva. Adquiria-o, furioso, e acabava com ele logo ali. Então lambia o beiço, esfregava as mãos e, satisfeito, ia à procura de outro.

Portanto, nada mais compreensível do que ver Makarel entrar, já zangado, na pastelaria Ao Doce da Malásia. Foi logo direito ao balcão envidraçado e observou o que havia, disposto a tudo.

Viu-o imediatamente. Era redondo, bem grande, coberto de creme amarelado, maligno e quase tão agressivo como Makarel. 

Não hesitou.

– Este!

Apontava o bolo com o dedo, enquanto olhava imperativa mente para o empregado.

O empregado pegou no bolo com a pinça e estendeu-o a Makarel, com um guardanapo de papel a acompanhar.

Makarel abriu a boca. sorriu na vingança a vir, ergueu o bolo e avançou a cabeça, com a outra mão por baixo para não sujar o fato.

O bolo saltou-lhe da mão e ficou pousado na mesa, atento.

Makarel teve um sobressalto. Que era aquilo? Resistência?

Atirou uma sapatada velocíssima, na intenção certa de pegar

o bolo.

Qual nada! O bolo, mais veloz ainda, zás, em cima do balcão.

Então Makarel encanzinou-se. A ferocidade recalcada veio-lhe toda acima. Arreganhou os lábios, com os caninos à vista em agressão declarada.

E atirou um murro demolidor ao bolo e ao balcão. Acertou no balcão e partiu tudo. No bolo, não.

O bolo engrossara, estava de pé junto à porta dos Cavalheiros, fitando friamente Makarel através do creme cor de creme.

Pessoas levantavam-se, algumas cadeiras caíam, o empregado rugia entre os restos do balcão.

Makarel avançou para o bolo. Perdera a noção da prudência, queria comer, queria matar aquele bolo, queria destruir a coisa redonda, mergulhar as mãos até ao fundo no creme, esfrangalhar, triturar.

O bolo avançou também, determinado, num caminhar maciço.

Enfrentaram-se.

Makarel atirou-se de punhos para a frente e cabeça encolhida entre os ombros.

As portas rebentaram, deixando os gonzos solitários, a montra estilhaçou-se e vomitou lampreias de ovos. Lascas de madeira tinham sido mesas, cadeiras esmagavam-se ao sopro vindo de uma fúria ciclópica.

As pessoas saíam, numa correria de alucinação. Procuravam a polícia, os bombeiros, o exército, o ministério, a presidência, até mesmo a NATO pelo telefone.

O primeiro a chegar foi Gumersindo, da charcutaria ao lado, com a tranca da porta das traseiras.

Deu uns passos temerosos, avançando com cuidado entre o desastre caótico. Tudo estava calmo, num silêncio de abismo milenário. 

Lá ao fundo o bolo abominável sorria, a limpar o creme que lhe escorria ao de leve entre o açúcar. 

Mais ninguém, na pastelaria Ao Doce da Malásia.


Mário Henrique Leiria, Contos do Gin Tonic, 1973

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