Os Diários Lunáticos de Zenit Saphyr (8 de Setembro de 2007)

Inebriantes vibrações aromáticas espraiam-se pelas ruas banhadas de sol. O cheiro invade as narinas treinadas e perturba o sono de um estômago há muito adormecido.

Quando a segunda vaga de fome enche de secura a barriga vazia, sabemos que o apelo da Natureza não pode ser negado e vamos atrás de qualquer coisa que se coma. Estar dois dias em jejum quase involuntário, à deriva por ruas mirabolantes com uns dinheiros que dão para coisas, mas nunca para comer, deixa-nos arrasados, incapazes de pensar como pensamos. Retardamos o saciamento. Talvez seja só eu, mas, às vezes, não como.
Numa rua suburbana, com prédios de três andares, um odor místico. Senti-o com toda a dimensão da minha sensação, quase como se abocanhasse as salsichas e as batatas fritas de uma só vez. É um cheiro distinto. Senti também o aroma de ovos a serem estrelados. Dirigi-me ao prédio, carreguei no segundo andar, de onde o odor vinha e disse que vinha contabilizar a electricidade no prédio. Farejava por escadas desconhecidas uma refeição. Bati à porta. Não havia luz no prédio, por isso quando um homem alto abriu, pude apenas ver o seu perfile, sem conseguir olhar os seus olhos na escuridão, um erro de iluminação. Com o meu sorriso mais amável dirigi-me a ele.
- Salsichas com batatas frias e ovo estrelado!
O gélido silêncio que se seguiu e lentidão dos seus gestos estúpidos fez-me entender que cometera um erro. Ficou sem reacção, durante um minuto a olhar-me com medo, gigante estátua pasmadas. Uma voz feminina vinda da luz. Tom hostil.
- Se é o homem da electricidade dá-lhe um...
- Não é o homem da electricidade, é um estrangeiro.
No seu hálito senti a essência da planta da mostarda.
- Pôs mostarda nas salsichas com batatas frias e ovo estrelado
Eu repetia "Salsichas com batatas frias e ovo estrelado!" como se fosse uma salmodia antiga, mas na verdade era a melhor forma que eu encontrara para dizer aquele prato na língua que achei adequada.
-Não é isso que vão comer? Gostava de comer convosco, estou com muita fome.
Ele encolheu os ombros e percebi que eram vãs as minhas tentativas, ele percebia o meu pedido, mas não o tolerava.
- Sabe o que vou comer. E então?
Sorri ao rosto que continuava a não ver. O insuportável peso da sua antipatia esgotou o ar disponível
- Gozatzeko.
Despedi-me com essa palavra basca, que significa "disfrute!" e precipitei-me escadas abaixo em busca de outro lugar para saciar as minhas fomes e fantasias.


Ainda está por realizar um estudo sério que analise a forma como se relacionam a fome e os odores que sentimos. Se uma refeição .

Oferecer-me-iam uma refeição se eu adivinhasse pelo cheiro o prato que cozinham?

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