Os Diários Lunáticos de Zenit Saphyr (31 de Maio de 2015)
A festa acabara há mais de uma hora e, na rua deserta,
dançavam, rodopiando ao sabor do vento, todo o tipo de detritos de que as
pessoas faziam uso para celebrar. Giravam em espirais de vento centenas de
copos de plástico, guardanapos manchados de óleo, usados para segurar bifanas e
sardinhas, embalagens de plástico de todo o tipo de iguarias e o seu lento
rastejar na noite plácida provocava um som agonizante que me enchia de angústia.
Panfletos e esferovite vinda sabe-se lá de onde formavam um novo azulejo em
movimento por cima do azulejo da calçada estático. Alguns papéis e sacos de
plástico foram promovidos e bailavam no céu, em cima da minha cabeça. Ver todo aquele lixo arrastando-se como se
tivesse vida própria e ouvir aquele som de arrastar de papel e plástico, de vidro
chocalhando nas bermas da estrada comoveu-me profundamente. Jurei solenemente nunca mais
largar o mais irrelevante artigo de lixo para o chão. Nunca mais. Podia ter
sido apenas uma vulgar promessa, rapidamente esquecida, mas uma lufada de vento
mais forte animou ainda mais o lixo dançante e fez tombar sete ou oito garrafas
de vidro, incautamente colocadas em cima de um contentor, quando podiam ter sido
deixadas dentro dele. Quando as garrafas atingiram o chão, uma miríade de
cristais multicoloridos explodiram como fogo de artifício tilintando no
alcatrão. Eu ajoelhei-me e comecei a chorar, lançando o meu brado para a noite
deserta:
- Porquê? Meu Deus, Porquê? Nada contém o ímpeto de uma
multidão destruidora! Nada segura a escumalha organizada!
Solucei a última frase e caí de bruços durante uma fracção
de segundo. Quando me levantei já tinha tomado a decisão de limpar toda aquela
rua pelas minhas próprias mãos... Abri a tampa do grande contentor e pus mãos à
obra, transportando nos meus braços a maior quantidade de lixo que conseguia.
Agarrei em toda aquela porcaria com as minhas próprias mãos, sentindo alguma
raiva da multidão, mas nunca nojo. Fui metendo o lixo para aquele contentor até
ele estar cheio. Quando não consegui meter lá para dentro mais lixo fechei-o e
arrastei-o pesadamente até ao fim da rua, onde devia haver um outro igual. A meio do caminho vi um carrinho de mão, daqueles que se encontram no supermercado e exultei de felicidade, pois não sabia o que fazer com as garrafas de vidro; não as podia colocar no lixo comum! Aquele carrinho chegava para colocar todas as garrafas de vidro daquela rua. Encontrei rapidamente o contentor de lixo com rodas e troquei-os. Quem me visse avançando pela rua com um
grande contentor verde do lixo pensaria que eu era louco e chamaria a polícia
que me encarceraria sem mais perguntas, mas essas pessoas não compreendiam o
bem que eu estava a fazer a esta rua, só eu entendia. Daqui a alguns anos,
quando se fizer justiça ao meu bom trabalho, vão nomeá-la Rua Zenit Saphyr,
conversas na Câmara, "que grande trabalho de limpeza fez o Zenit nessa rua
naquela noite particular, merece sem dúvida as maiores honrarias, ele, que
sozinho arcou o lixo da multidão". Fotos tiradas com os meus fãs que vêm
de todo o mundo para se fazer fotografar comigo e com as minhas vassouras. As
pessoas comentam a simpatia do maior dos homens do lixo. Uma gigantesca estátua
é-me erigida ali mesmo, três metros de altura, uma estátua de cobre banhada a
ouro e, à minha frente, um contentor pintado a negro dentro de um carrinho de
mão e as minhas mãos segurando o carrinho com segurança. Na inauguração as pessoas cochicham, "ele está cá, o autoproclamado
lixeiro, vejam-no". Ganho importância no sindicato e nenhuma reunião acaba
sem que eu dê a minha opinião e dou-a sempre, esticando o dedo enquanto falo.
Exijo salários de 3000 euros por mês para todos os varredores e homens do lixo.
O Governo nega e fazemos uma longa greve. As ruas enchem-se de lixo e já
ninguém suporta o cheiro a fossa que se sente em toda a cidade libertado de
amontoados de sacos do lixo acumulado. O Governo acaba por ceder e oferece
salários de 2500 euros a todos os trabalhadores do lixo, que se tornam
finalmente em trabalhadores dignos e orgulhosos do seu trabalho. Debaixo dos
seus fatos macaco, que tiram orgulhosamente, surgem agora fatos impecáveis da Giorgio Armani, cujo cheiro adocicado os
faz esquecer todo o lixo que haviam removido. Agradecem-me repetidas vezes
sempre que me cruzo com eles, "louvamos Zenit Saphyr, que trouxe justiça
ao mundo da recolha de lixo" e eu olho-os humildemente, "não foi nada
de mais, camaradas. Estou no mundo para fazer valer a equidade e o bem". Ah, que dia feliz seria esse, mas para aquele dia ainda tinha muito trabalho. Quando acabei de recolher todo o lixo de papel, plástico e esferovite deixei o segundo contentor quase cheio. Fechei-o, com um grande sentimento de realização e comecei a meter as garrafas de vidro no carrinho de mão de supermercado. Foi uma tarefa rápida, que não demorou mais de 15 minutos. Quando acabei, olhei para a rua impecável e imaginei os homens do lixo a chegarem na manhã seguinte e a olharem incrédulos para a rua que estava um brinco, pronta para deixar passar o mais prepotente dos tiranos governantes. Arrastando o meu carrinho cheio de garrafas de vidro tilintando, em direcção ao ecoponto mais próximo, senti um fogo de artifício poético explodir nas minhas costas.
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