Ida ao Psicólogo

N.V. - Eu senti a minha cabeça falhar demasiadas vezes para alguma vez poder pensar que há uma saída...
B. - Como é que a sentiste falhar? Porquê?
N.V. - Penso descontroladamente numa coisa, uma ideia fixa que eu já não quero ter, mas que acaba sempre por voltar, invariavelmente. Foi-me dito para esquecer, para ultrapassar, para resistir à dor, mas isso não me foi possível...a ideia regressa, e até em sonhos a vejo representada, encenada por artistas dementes que me controlam as profundezas do cérebro. Fui vencido por eles, eles controlam a minha vida e os meus ideais, porque os sonhos são uma coisa incontrolável, um lugar onde a nossa alma se exprime, onde pensamos naquelas coisas intensas, onde estamos verdadeiramente com nós mesmos e com as nossas ideias e os nossos desejos. Os problemas mal resolvidos são passaportes seguros para uma tristeza que está sempre a chegar. A vida é linda, o amor é breve e a tristeza é imensa, principalmente por eu estar sempre a recordar o irresolúvel problema.
B. - Podes falar-me desse problema?
N. V. - Não.
B. - Sabes que se falares sobre os teus problemas as pessoas podem...
N.V. - Não.
B.- Não sabes, ou...?
N.V. - Não falo. Se eu não resolver os meus problemas não vai ser alguém exterior não designado por mim a resolvê-los...
B. - Mas, tu designaste-me a mim, podias ter consultado qualquer outro psicólogo...
N.V. - Não, eu vim para aqui arrastado por problemas judiciais e imposições, que me fizeram consultar semanalmente um psicólogo e apresentar provas disso (estende-lhe a folha para ele assinar), para me poder manter em liberdade...
B. (irado) - Já viste a situação em que me deixas? O que vamos falar na próxima hora, se dizes, sem medo, que não queres contar-me nada? Nem assino essa merda desse papel (pega nele, olha-o, larga-o semi-amarrotado e começa a falar com uma voz afectada, em puro gozo)! Ah, olha, o menino só fala dos seus problemas com pessoas por si designadas e por si desejadas....(sério e tenebroso) essa é, seguramente, uma das razões do teu alheamento do mundo, que vinha aqui descrita na tua carta de recomendação escrita pelos teus encarceradores...
N.V. - Esses cabrões só viram de mim aquilo que eu lhes quis mostrar, eles nada entendem de...
B. (solta uma descomunal gargalhada) - Ainda por cima, hem? És daqueles caralhos que se julgam muito complexos e difíceis de entender, com causas profundas e antigas nas raízes dos seus problemas (longa e intensa gargalhada) não passas de um maricas, incapaz de te confrontar colectivamente com os teus problemas para os resolver.
N.V. - Agora já nem sei, nem sei bem...Será que quem precisa de ajuda aqui sou eu?
B. (cada vez mais surrealmente furioso, batendo com um punho de forma cadenciada na mesa de madeira) - Como te atreves? (Olhos extremamente arregalados) Eu é que sei do que as pessoas precisam, psicologicamente, digo-te....Precisas de ter lata vir para um consultório de um psicólogo e atreveres-te a ler a minha mente, a pôr em causa a minha interpretação das coisas! É um absurdo...Tu leste Freud? Tiveste aulas de psicopatologia?...de psicometria?...Alguma vez fizeste a análise da personalidade com raciocínio e linguagem? Estudaste o "O Homem e os seus símbolos" de Carl G. Jung? Eu queimei os olhos estudando para tu saberes ler melhor pessoas que eu? (Continua esmurrando a mesa).
N.V. (com genuíno medo, depois das acções do psicólogo) - Vamos ter calma.  Eu acho que as pessoas não se lêem, não são livros, (psicólogo abranda o espancamento da mesa, até que para) e ainda que as suas expressões, os seus gestos e os seus olhares sejam palavras, são-o apenas vagamente, sem significados concretos, isto é o que eu defendo, aquilo em que acredito.
B. - Mas tu não percebes nada disto! Não fales sobre compreensão das pessoas, que eu não vou jogar à bola com o Cristiano Ronaldo. Porque raio não me hás-de contar isso?
N.V. - Eu decidi não contar isso a ninguém..Até pode ser que isso não tenha importância nenhuma para as alterações na minha mentalidade, nem influência no meu alheamento, mas...
B. (de forma conclusiva) - MAS SE EU NÃO SOUBER NÃO PODES SABER!
N.V. - Então tudo bem, não quero saber...prefiro não saber, morrer com isto a contá-lo à pessoa errada...é um problema que carrego sozinho desde os doze anos, que foi quando eu adquiri a percepção absoluta do tempo, desde essa altura que eu me recordo de todas as coisas que se passaram à minha volta e de ter feito a interpretação correcta de todas as ocorrências que presenciei.
(Faz-se silêncio)
N.V. - Outro dia eu sonhei com uma coisa relacionada com isso, com o problema que motiva tudo e move o meu mundo, e o meu coração acordou agitado, causando uma tempestade no lago da minha alma...
B. - E se te deixasses de lirismos e fosses directo ao assunto? Estás aí com rodeios a dizer que dizes o que não podes dizer, a fazeres-te de complexo e profundo que tem problemas inomináveis, impensáveis. O que estás a fazer é um exercício de fechamento que resulta numa conversa redundante. (Levantou-se e começou a desenhar círculos no ar agitando os dois dedos indicadores aleatoriamente, até que acertou com um círculo contínuo para o indicador da mão direita e continuou a agitar em círculos aleatórios o dedo da mão esquerda, mesmo ao pé da têmpora no lado esquerdo da sua cabeça no gesto universal da loucura. Os seus olhos arregalaram-se e continuou o seu discurso). S-sabes que vir a um psicólogo e contar-lhe que tens coisas que não podes contar, como se o desafiasses a descobrir por si o que lhe queres dizer é um exercício puramente parvo?
N.V. -

Nadir Veld

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