Comiseração (IV) P

Hoje fui passear até ao parque e estava a deambular por lá quando uma mulher com um insinuante vestido negro bem colado às curvas do corpo captou a minha atenção. Estava acompanhada pelo seu cão, um pequeno fox terrier. Pareceu-me ouvi-la dizer "anda!", pouco depois do seu olhar se cruzar com o meu pela primeira vez. Era um convite e eu não pude evitar que me aflorasse por baixo do bigode um sorriso de esperança marota, um sorriso de antecipação de amor. Mordi os lábios e comecei a andar atrás dela. A certa altura ela parou e eu tive de ultrapassá-la para o nosso jogo não dar muito nas vistas, mas depois eu fingi interesse numa coisa que andava por ali ao vento de um lado para o outro, uma embalagem de chocolate, ou outro lixo qualquer, para que, enquanto me ocupava a deitá-lo fora, ela me voltasse a ultrapassar. Ela voltou a convidar-me com um "vamos!", e eu segui hipnotizado pela sua traseira. Estávamos a chegar a sua casa. Íamos entrar e viver gloriosos momentos. Ela abriu a porta e eu esgueirei-me atrás dela.
"Então, que está a fazer?" perguntou-me indignada e empurrando-me.
"Desculpe...Pareceu-me tê-la ouvido dizer-me anda, como um convite para a acompanhar..."
"Estava a falar para o cão!..." respondeu-me ela com o olhar esbugalhado e o tom de voz arrastado de quem esclarece algo óbvio. Voltou-se e entrou irritada em casa e eu era capaz de jurar que ela desviou o cortinado de uma janela para ver se eu já me tinha ido embora. Recuei para um canto escuro e permiti que a sombra se adensasse à minha volta. Deixei que a escuridão formasse um pacto com o meu corpo constantemente humilhado e desvaneci como matéria de fantasma.

Nadir Veld

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