Almas Mortas (666 palavras)

Vi os espíritos mais perturbados da minha cidade
Arrastarem-se conturbados por avenidas cheias de gente disposta a ajudá-los
Seguindo silentes os seus caminhos de perdição
Preocupados em não incomodarem com lamentos os seus conhecimentos
Orgulhosos da dor guardada no seu íntimo e confinada à sua consciência dolorida
Vi-os cerrando os olhos num pranto interior, desviando a atenção da rua colorida
Focando-se num negro abismo há muito iniciado
Demasiado tristes para se desfazerem em lágrimas
Aninhando-se sobre si mesmos esforçando-se para não serem vistos
Fazendo-se pequenos para passarem despercebidos
Destruídos pelas humilhações às portas da loucura
Aguardando que a morte esfomeada os devore
E sossegue enfim o clamor longo do cérebro dilacerado
Vi o medo puro raiando mortiço nos seus olhos tristes
Enquanto fitavam vazios os caminhos frios
Com as mãos enterradas nos bolsos e a cabeça baixa
Vencida por um mundo em que não encaixa
Resignados ao seu miserável destino
Cambaleando sozinhos num constante desatino
Vi o pânico trepando angústias inconcretas pelos seus peitos instáveis
Enquanto tremiam as suas pernas aflitas em convulsões incontroláveis
Agitados pela inquietação e o desassossego da desilusão exacerbada
Sem encontrarem um fim para a dor continuada
Ansiosos numa espera eterna aguardando iludidos
A felicidade que nunca chegará
Vi-os perdendo o domínio do seu corpo
Lançando-se loucos involuntariamente
Contra superfícies duras buscando uma dor renovadora
Que fizesse esquecer todas as dores espirituais
Vi-os acordarem ansiosos e angustiados
Mais cansados que no início do seu sono
Perturbado por sonhos de abandono
Estranhos enredos poéticos engendrados
Por brilhantes mentes febris auto-torturadoras
Que os deixavam enredados em agonias devoradoras
Vi-os mentirem sem esforço sorrindo sorrisos falsos
Para se enganarem até a si próprios
Desviando o rumo dos seus pensamentos
Para lugares menos inóspitos
Depois de erguerem as suas vozes interiores umas contra as outras
Perdendo propositadamente o fio de todos os pensamentos
Vi os seus rostos contorcerem-se em esgares de muda dor
Doentes, desiludidos, dementes, murmurando entre dentes
Que se vêem impotentes perante o perigo adiante
Vi-os cobiçando a felicidade alheia sem maldade
Desejando aquela tranquilidade satisfeita para si
Sem compreenderem como era possível alcançá-la
Sem perderem os seus ideais virtuosos
Vi-os filiarem-se nas aflições de Cristo
Murmurando "eu não desisto" entre súplicas místicas com laivos de cegueira crua
para se sentirem divinos em conjunto repetindo as mesmas frases em pedestais
Lá nas grandes catedrais de pedra erguida acima das nuvens e do sonho
Vi-os enfrentarem a noite imensa com a resolução
De quem já venceu só a escuridão intensa
Projectando nos astros profecias esperançosas
Arriscando no desconhecido aventuras amorosas
Apesar de acabarem sempre desditosas
Vi-os depositarem as suas esperanças orgulhosas
Em barcos em chamas que dirigiam
Despreocupados com os rostos serenos e felizes
Enquanto se afundavam e já no fundo do mar
Incapazes de perceberem a dimensão do apuro
Vi-os humilhados, estrebuchando num martírio puro
Ardendo sozinhos antecipando mais delírio futuro
Sentindo pena de si próprios
Multiplicando a sua miséria real até ao infinito
Enchendo com ela toda a sua meditação
Vi-os lançarem fogo ao céu e ao Oceano
Piorando a depressão de ano para ano
Acumulando fúria ocasionalmente libertada em movimentos frenéticos
Vi-os gritarem histéricos irremediavelmente perdidos
Falando sozinhos com as paredes que lhes respondem
Com ódio aterrorizando-os mais e mais
Com obsessões e velhas ideias repetidas até ao delírio
Vi-os cruzarem a última fronteira
Saltando com a corda ao pescoço
Mergulhando num denso poço
Tomando à morte a dianteira

Deixei todos os monstros entrarem em procissão
Estendi-lhes um tapete cor de solidão
E jurei ao lado negro servidão

Nadir Veld

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