Comiseração (33)

Se ao menos não houvesse reflexos no mundo...Ah, assim talvez pudesse ser mais suportável esta minha inexistência permanente, mas, ao ver a imagem do que eu sou projectada mesmo à minha frente, mimetizando todos os meus gestos, recorda-me. Recorda-me todo o passado, todo o futuro e arrasa brutalmente com o meu presente. Fico completamente fora de mim...Levo as mãos à cabeça para conter toda esta cólera, para, com massagens relaxantes, acalmar o intempestivo fluxo de ideias...duas mil palavras por minuto...turbilhão puro...fecho os olhos...será que a minha imagem também se esfuma do meu reflexo sempre que fecho os olhos? Eu deixo de a ver...mas não está aqui ninguém a quem possa perguntar, com quem possa esclarecer a dúvida...
Se não existissem espelhos, nem outros reflexos, nenhum de nós teria a mínima noção de como era, teria de viver com as descrições de terceiros, e assim imaginar a sua cara com o mesmo esforço que fazem os leitores com as personagens descritas. Não havendo reflexos eu podia até nem saber que era um homem, mas existem e eu vejo-me envelhecer neles de dia para dia, como se todos os objectos reflexivos me quisessem matar levando-me à loucura...

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